segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Vida profana no Campo? Não, agora é no Convento!

Sei que, provavelmente, já deram pela minha falta por aqui (ou talvez não). A razão é muito fácil de se perceber: tem havido falta de assunto, de acontecimentos que mereçam atenção aqui nos nove ilhéus açorianos. Sim, porque já me desliguei no que toca a aspectos da economia e política. Hoje, por acaso, passei por uma situação que considero merecedora de uma denúncia: os conventos portugueses, nomeadamente o micaelense Convento da Esperança.

Todos os anos, pela altura do Verão, tento fazer uma visita ao Convento da Esperança, aqui em Ponta Delgada. Nesta época sazonal, tanto os inúmeros emigrantes e/ou turistas, bem como os naturais da Ilha, podem visitar os seus recantos que não estão abertos ao público no resto do ano. 
Após informar-me acerca dos horários, lá fui eu hoje com uma amiga. Mal entrei pela porta lateral (ao lado do final da cerca do Santuário), deparei-me com um mendigo que me pedia, com as lágrimas nos olhos, uma sandes para almoçar, pois ainda não tinha comido hoje. Infelizmente, não o pude fazer porque não tinha dinheiro suficiente e o único que possuía estava destinado ao autocarro que me levaria de volta a casa.
Pergunto-me eu nestas alturas: por onde andam as irmãs do Senhor? Aquelas que são conhecidas pelo tão próspero bem que fazem ao próximo? Afinal, penso até que o voto de pobreza e a entrega ao outro são um constituinte essencial da sua personalidade, daí advindo parte da sua vocação. 
Bem sei que a Câmara Municipal disponibiliza o serviço em questão (infelizmente, pouquíssimo divulgado), no entanto, isto torna-se escandaloso ao ponto de os sem-abrigo já se infiltrarem na entrada de um convento, importunando transeuntes e até mesmo turistas, que nem sempre os conseguem compreender. 
Poderia aqui juntar mais exemplos que são massivamente conhecidos, como a Chalupa (senhora com cerca de 50 anos, que vagueia pelo Campo normalmente sempre alcoolizada).
Esta situação torna-se ainda mais chocante a partir do momento em que as próprias irmãs estão sob suspeita de um roubo que foi efectuado numa das peças mais importantes do tesouro do Sr. Santo Cristo: o resplendor. Provavelmente você, caro leitor, tomou conhecimento da inúmera polémica que se gerou devido ao convite do Museu Nacional de Arte Sacra, em adquirir o resplendor em questão para uma exposição sua, durante nove meses, no Continente. A população revoltou-se, pois este é um tesouro regional, portanto, nem o Governo Regional nem a Diocese teriam direito em decidir o caso sem consultarem a Reitoria do Santuário, até porque, tal como a classificação o indica, os verdadeiros portadores são os inúmeros fiéis. No entanto, a peça não seguiu para Lisboa às claras, sabendo-se apenas do seu envio cerca de dois dias depois, mesmo após um cordão humano que rodeou todo o Campo do Senhor contra esta decisão. 
Além disto, considerando-se este culto secular com cerca de trezentos anos, em que o seu templo é considerado um Santuário, com que direito se deixa que os constituintes ande a viajar por aí? Do meu escasso conhecimento no que toca a tópicos religiosos, penso que os cultos que adquirem o estatuto de Santuário, tornam-se centros de peregrinação que atraem milhares de todos os cantos do Mundo. Não que o culto ande a viajar para ser exibido em exposições. Abuso de poder episcopal, e não tenho mais nada a dizer. 
No entanto, isto não tem comparação com o que seguidamente se noticiou: o desaparecimento de várias peças preciosas do resplendor (nomeadamente sete), bem como o aparecimento de um rubi falso. Tendo em conta que o resplendor só sai do Convento na procissão (tendo irmandade contacto apenas nesta altura do ano com o referido), e que as únicas zeladoras do tesouro são as irmãs, o que pode pensar? A verdade é que já não é de hoje que a luxúria e o pecado apoderaram-se daqueles que deviam ser os lugares mais isentos deste tipo de podridão. Algo, aliás, já criticado por Gil Vicente, isto no século XVI. O que dizer dos nossos dias?
Seguidamente ao triste episódio do sem-abrigo, dirigi-me à Exposição que mostraria as capas do Senhor, algumas peças de arte sacra do Convento, um documentário sobre o seu tesouro e o acesso à antiga cozinha do Convento. Ao aproximar-me da porta, ouvi uma irmã dizer a um turista, em inglês: Boa Tarde, quer visitar a nossa exposição? É um euro, por favor. Quando ouvi, nem eu nem a minha amiga quisemos acreditar. Um euro? Mas isto é aceitável? Isto é um abuso total! A igreja é o primeiro órgão a defender a total ausência de abuso económico por parte dos seus constituintes, e agora isto? O ofertório nas missas até é compreensível, porque o Templo subsiste disto. É uma enorme falta de respeito para com uma devoção única na Península Ibérica e que pertence, única e exclusivamente, ao povo! 
Tal como eu, muitos turistas arredaram pé. Uns por não entenderem, outros por não concordarem com tal. Mas adiante. Para que a visita não fosse infortuna, decidi vistar a Capela do Senhor, localizada no coro baixo. Apesar de ver um anúncio que proibia fotografias, deparei-me com alguns turistas a utilizarem máquinas Canon e a fazer o referido com flash, sem que ninguém chamasse à atenção. Achei estranho, pois pensava que era proibido devido ao efeito que poderá ter nas inúmeras peças disponíveis na Capela. Contudo, decidi tirar uma foto com o meu telemóvel, pois gostaria de ricar com uma recordação.
Imediatamente, chegou uma senhora pouquíssima educada, avisar-me que não poderia tirar fotografias, e se estaria cego por não ver o aviso. Respeitosamente, disse-lhe que o meu telemóvel não tinha flash, que não afetaria coisa alguma, e que não era o único. Ao tentar apontar um desses casos, deparei-me com o seu desaparecimento (bem como os demais). A bondosa senhora disse-me que não era devido ao flash, mas sim ao não-lucro que isso traria ao Convento. Estupefacto, percebi que o proíbem devido ao facto de quererem amealhar à custa da venda de artigos como fotos/estampas da Imagem, na famosa Roda, ao lado do Convento.
Contrariado e, sobretudo, desiludido, saí e olhei o Senhor uma vez mais e, sinceramente, não me espanta minimamente o seu olhar triste, ao aperceber-se de tudo isto. O calvário continua em 2014 e continuará para sempre, parece-me...  

segunda-feira, 14 de julho de 2014

“Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...” - e não é que tinha razão?

Crónicas de um Ilhéu nasce oficialmente hoje, dia 14 de Julho de 2014, mas é como se fosse uma data de um Cartão de Cidadão, pois já me circulava na mente há algum tempo. Não poderia começar este lugar de desabafos sem fazer referência a uma figura que idolatro e que, por coincidência, também é natural dos Açores: Antero de Quental.


Para os mais esquecidos (isto porque hoje, segundo as mais diversas opiniões de suas excelências doutoradas, já não existem ignorantes, mas sim pessoas que perderam o hábito de conhecer), Antero de Quental foi um dos maiores vultos de vários campos do nosso país em áreas como a política ou a literatura. 
Algumas vezes já tentei abstrair-me daquela insularidade que se me carrega na alma, fruto da minha naturalidade, para tentar perceber o que sentiriam as pessoas se soubessem que um dos maiores vultos de sempre era da mesma terra que elas. Provavelmente ficariam orgulhosas, honradas até. Mas como diria Thomas Moore na sua Utopia, a perfeição é unicamente atingível na mente do Homem. E não poderia concordar mais. Cada vez que olho ao meu redor (vulgo Ponta Delgada), fico sempre confuso com o facto de ela estar tão vazia de Antero, de ser tão inóspita para ele. E um grande temor apodera-se de mim. Apercebo-me de que, cada vez mais, os maiores e os que deveriam ser louvados estão a ser esquecidos, perdidos algures num universo paralelo que, se espera, seja melhor para eles. 
Recentemente passei pelo Campo de São Francisco, na cidade de Antero, bastante afamado por nele se encontrar o Santuário da Esperança e, a partir daí, se realizarem as Festividades do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a maior expressão de fé com raízes açorianas. Percorro todo o campo, já num lusco-fusco, que é quando este está a despovoar-se. Porque é assim que gosto de percorrer lugares que considero quase sagrados, não pelo culto religioso que se pratica, mas pelo seu chão, que foi pisado por figuras tão grandiosas quanto esquecidas.
Olho para o meu lado esquerdo, procurando o fim da cerca do Convento. Encontro a palavra Esperança cravada na parede. E olho para baixo, encontrando o banco. E recordo-me que foi ali. Foi neste sítio que o poeta das fadas deu término à sua caminhada existencial. Violento final, diga-se de passagem, com dois tiros na garganta. Mas de Antero nunca se esperaria um fim silencioso, quase conventual, nunca.
Olho mais atentamente, e percebo que não está sozinho. Encontro um casal de namorados, a aproveitar a flor da juventude. Com pouquíssimos modos, na pouca-vergonha (diria a minha avó, quase garantidamente). E beijam-se, rebolam, riem, abraçam-se.  
Estou sentado noutro banco (lá rendi-me à ideia de que, nos próximos minutos, o banco estaria reservado), e observo-os. Como seria de esperar, olho sempre para este tipo de expressões da carne com algum cepticismo. Qual a razão de tão grande aparato? Serão filmagens de alguma curta-metragem? Mas não encontro câmaras que o provem. Algum namorico proibido? Nem por sombras. Pelo menos a minha definição contém encontros mais silenciosos. Mas talvez sejam só influências do meu gosto por clássicos.
Apercebendo-me de que o bichinho da curiosidade (incurável!) passara, mudo de perspectiva. Encontro uma guia turística com um grande aglomerado à sua volta, em frente ao Santuário. Não precisei de ouvir o que dizia para perceber que relatava a história da devoção à imagem que proferi acima. O grupo dirigiu-se para junto da estátua em homenagem à Madre Teresa da Anunciada (primeira incentiva ao culto referido e que, digamos, está pouquíssimo dotada de beleza desde as obras realizadas no Campo, já que perdeu o seu pedestal e este ano nem a Imagem viu durante a procissão). Depois de uma palestra que rendeu bastantes flashes, o tal aglomerado passou adiante sem notar sequer o rasto de História que ali ficara. 
O banco está vazio, o casal de pombinhos (finalmente!) partiu para outras bandas. E a procissão turística lá avançou, e não possui nem uma réstia de culpa. O banco está mesmo vazio. Vazio de pessoas mas, sobretudo, vazio de louvores tão merecidos. Já perdi há muito o sonho de idealizar ali uma estátua em homenagem a Ele, mas uma placa não. Nem isso há. Tenho a ideia de que a causa fatal da morte tenha interferido, com o auxílio da reitoria do Convento (já imagino a irmandade dizer que não quer nada ali que relembre o fatídico destino de uma figura que, só por isto já não tem direito ao Céu eterno, quanto mais por toda a oposição que teve em vida contra o meio eclesiástico). Não, e ponto final. E gabo-lhes a persistência. Porque a Câmara rebaixa-se, a população ignora e os poucos que ainda o veneram são sufocados por vozes que gritam aos quatro ventos termos como falta de verbas. 
E é nesta hora crepuscular, num Campo vazio, que relembro um verso do famoso Palácio da Ventura, onde Antero diz: Eu sou o Vagabundo, o Deserdado. Tão sentido por ele e tão incompreendido pelos muitos seus semelhantes da altura. E é olhar para este espaço e ver que o Antero que profetizou, acabou por acertar. Ouve-se um tiro ao longe. E por irónico que pareça, tenho noção de que foi Ele. Antero morreu mais uma vez.