segunda-feira, 14 de julho de 2014

“Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...” - e não é que tinha razão?

Crónicas de um Ilhéu nasce oficialmente hoje, dia 14 de Julho de 2014, mas é como se fosse uma data de um Cartão de Cidadão, pois já me circulava na mente há algum tempo. Não poderia começar este lugar de desabafos sem fazer referência a uma figura que idolatro e que, por coincidência, também é natural dos Açores: Antero de Quental.


Para os mais esquecidos (isto porque hoje, segundo as mais diversas opiniões de suas excelências doutoradas, já não existem ignorantes, mas sim pessoas que perderam o hábito de conhecer), Antero de Quental foi um dos maiores vultos de vários campos do nosso país em áreas como a política ou a literatura. 
Algumas vezes já tentei abstrair-me daquela insularidade que se me carrega na alma, fruto da minha naturalidade, para tentar perceber o que sentiriam as pessoas se soubessem que um dos maiores vultos de sempre era da mesma terra que elas. Provavelmente ficariam orgulhosas, honradas até. Mas como diria Thomas Moore na sua Utopia, a perfeição é unicamente atingível na mente do Homem. E não poderia concordar mais. Cada vez que olho ao meu redor (vulgo Ponta Delgada), fico sempre confuso com o facto de ela estar tão vazia de Antero, de ser tão inóspita para ele. E um grande temor apodera-se de mim. Apercebo-me de que, cada vez mais, os maiores e os que deveriam ser louvados estão a ser esquecidos, perdidos algures num universo paralelo que, se espera, seja melhor para eles. 
Recentemente passei pelo Campo de São Francisco, na cidade de Antero, bastante afamado por nele se encontrar o Santuário da Esperança e, a partir daí, se realizarem as Festividades do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a maior expressão de fé com raízes açorianas. Percorro todo o campo, já num lusco-fusco, que é quando este está a despovoar-se. Porque é assim que gosto de percorrer lugares que considero quase sagrados, não pelo culto religioso que se pratica, mas pelo seu chão, que foi pisado por figuras tão grandiosas quanto esquecidas.
Olho para o meu lado esquerdo, procurando o fim da cerca do Convento. Encontro a palavra Esperança cravada na parede. E olho para baixo, encontrando o banco. E recordo-me que foi ali. Foi neste sítio que o poeta das fadas deu término à sua caminhada existencial. Violento final, diga-se de passagem, com dois tiros na garganta. Mas de Antero nunca se esperaria um fim silencioso, quase conventual, nunca.
Olho mais atentamente, e percebo que não está sozinho. Encontro um casal de namorados, a aproveitar a flor da juventude. Com pouquíssimos modos, na pouca-vergonha (diria a minha avó, quase garantidamente). E beijam-se, rebolam, riem, abraçam-se.  
Estou sentado noutro banco (lá rendi-me à ideia de que, nos próximos minutos, o banco estaria reservado), e observo-os. Como seria de esperar, olho sempre para este tipo de expressões da carne com algum cepticismo. Qual a razão de tão grande aparato? Serão filmagens de alguma curta-metragem? Mas não encontro câmaras que o provem. Algum namorico proibido? Nem por sombras. Pelo menos a minha definição contém encontros mais silenciosos. Mas talvez sejam só influências do meu gosto por clássicos.
Apercebendo-me de que o bichinho da curiosidade (incurável!) passara, mudo de perspectiva. Encontro uma guia turística com um grande aglomerado à sua volta, em frente ao Santuário. Não precisei de ouvir o que dizia para perceber que relatava a história da devoção à imagem que proferi acima. O grupo dirigiu-se para junto da estátua em homenagem à Madre Teresa da Anunciada (primeira incentiva ao culto referido e que, digamos, está pouquíssimo dotada de beleza desde as obras realizadas no Campo, já que perdeu o seu pedestal e este ano nem a Imagem viu durante a procissão). Depois de uma palestra que rendeu bastantes flashes, o tal aglomerado passou adiante sem notar sequer o rasto de História que ali ficara. 
O banco está vazio, o casal de pombinhos (finalmente!) partiu para outras bandas. E a procissão turística lá avançou, e não possui nem uma réstia de culpa. O banco está mesmo vazio. Vazio de pessoas mas, sobretudo, vazio de louvores tão merecidos. Já perdi há muito o sonho de idealizar ali uma estátua em homenagem a Ele, mas uma placa não. Nem isso há. Tenho a ideia de que a causa fatal da morte tenha interferido, com o auxílio da reitoria do Convento (já imagino a irmandade dizer que não quer nada ali que relembre o fatídico destino de uma figura que, só por isto já não tem direito ao Céu eterno, quanto mais por toda a oposição que teve em vida contra o meio eclesiástico). Não, e ponto final. E gabo-lhes a persistência. Porque a Câmara rebaixa-se, a população ignora e os poucos que ainda o veneram são sufocados por vozes que gritam aos quatro ventos termos como falta de verbas. 
E é nesta hora crepuscular, num Campo vazio, que relembro um verso do famoso Palácio da Ventura, onde Antero diz: Eu sou o Vagabundo, o Deserdado. Tão sentido por ele e tão incompreendido pelos muitos seus semelhantes da altura. E é olhar para este espaço e ver que o Antero que profetizou, acabou por acertar. Ouve-se um tiro ao longe. E por irónico que pareça, tenho noção de que foi Ele. Antero morreu mais uma vez. 

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